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A ascensão da inteligência artificial (IA) e, de forma mais ampla, da inteligência virtual, representa uma das maiores transformações tecnológicas do século XXI. A capacidade das máquinas de aprender, tomar decisões e interagir de maneira autônoma com o ambiente social e econômico cria não apenas oportunidades, mas também sérios desafios éticos e jurídicos — especialmente no campo do Direito Penal.
A natureza autônoma e, muitas vezes, imprevisível da inteligência virtual levanta uma série de questões fundamentais: quem responde penalmente por um ato ilícito cometido por uma IA? Há possibilidade de responsabilização penal direta da máquina? Como ficam os princípios da culpabilidade, tipicidade e imputabilidade nesse novo cenário? Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre essas questões, partindo dos fundamentos do Direito Penal clássico até os debates contemporâneos sobre responsabilidade penal em um contexto de automação avançada.
A inteligência virtual, em sua acepção mais moderna, refere-se à capacidade de sistemas computacionais de simular comportamentos humanos, aprender com dados e tomar decisões complexas sem intervenção direta humana. Tecnologias como machine learning, deep learning e redes neurais artificiais permitem que algoritmos se tornem progressivamente mais sofisticados, chegando ao ponto de realizarem tarefas com certo grau de criatividade e autonomia.
Essa autonomia, no entanto, é limitada por sua base algorítmica: toda IA é, essencialmente, produto de uma programação inicial e de processos de treinamento baseados em dados fornecidos por humanos. Isso levanta o primeiro dilema penal: em que medida um ente não-humano pode ser considerado autor de uma infração penal?
O Direito Penal moderno é estruturado sobre pilares fundamentais, entre os quais se destaca o princípio da culpabilidade, que exige que o autor de um crime tenha capacidade de compreender o caráter ilícito de sua conduta e de agir conforme esse entendimento.
A inteligência virtual, ainda que avançada, não possui consciência, intencionalidade ou livre-arbítrio — elementos centrais para a configuração da culpabilidade penal. Portanto, até o presente momento, não é possível responsabilizar penalmente uma IA como sujeito ativo de um delito, dada a ausência de imputabilidade.
Diante disso, o foco da responsabilização recai sobre os sujeitos humanos envolvidos no ciclo de desenvolvimento, operação ou supervisão da IA: programadores, engenheiros, empresas desenvolvedoras, ou mesmo usuários finais que utilizam a tecnologia para fins ilícitos.
O princípio da tipicidade penal, conforme consagrado no artigo 1º do Código Penal brasileiro ("não há crime sem lei anterior que o defina"), exige que a conduta praticada se amolde perfeitamente à descrição contida no tipo penal. A aplicação desse princípio, entretanto, enfrenta desafios diante da crescente sofisticação das tecnologias de inteligência virtual, que podem ser utilizadas como meio ou instrumento para a prática de infrações penais, em especial no ambiente digital.
A inteligência virtual, por si só, não comete crimes, mas pode ser utilizada de forma direta ou indireta para viabilizar, ampliar ou dissimular a prática criminosa. Assim, surge um novo tipo de delinquência: a criminalidade mediada por IA, marcada pela complexidade técnica, pela pulverização da autoria e pela dificuldade probatória.
Algumas das condutas que vêm sendo observadas no contexto penal e que envolvem o uso indevido de inteligência virtual incluem:
A utilização da IA como instrumento da infração não exclui a responsabilidade penal dos agentes humanos envolvidos. O usuário final que emprega a tecnologia com dolo — ou mesmo com culpa, nos casos cabíveis — é penalmente responsável nos termos do Código Penal, como qualquer outro autor ou partícipe de delito.
Já no caso dos desenvolvedores, programadores ou fornecedores de sistemas de IA, a responsabilização penal exigirá a comprovação de dolo eventual ou culpa, conforme o caso. A ausência de mecanismos de segurança, a negligência no controle de riscos ou o treinamento da IA com dados enviesados podem, em tese, configurar responsabilidade penal indireta, sobretudo nos crimes culposos com resultado lesivo.
Diante das limitações do arcabouço penal tradicional, tem-se discutido a criação de um novo regime jurídico penal para situações envolvendo inteligência artificial. Entre as propostas mais debatidas estão:
Adicionalmente, é fundamental que o legislador, o Judiciário e a doutrina avancem em propostas de regulamentação que garantam segurança jurídica, sem engessar o progresso tecnológico.
O avanço da inteligência virtual impõe desafios inéditos ao Direito Penal, exigindo uma revisão crítica dos seus institutos tradicionais diante da realidade tecnológica atual. A impossibilidade de se imputar culpa a um ente
não-humano, como a IA, não significa a ausência de responsabilidade penal, mas sim a necessidade de redirecioná-la para os sujeitos humanos e jurídicos que detêm o controle sobre tais tecnologias.
Nesse cenário, torna-se indispensável uma atuação legislativa clara, uma doutrina penal moderna e uma jurisprudência sensível às transformações digitais, de forma a garantir a efetividade do Direito Penal sem comprometer os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
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BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020;
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 13ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2021.
Sobre o autor:
Agnes Meireles dos Santos, Pós graduanda em Direito Penal e Criminologia pela Universidade FMU/SP, Pós graduada em Direito Administrativo e Tributário pela Universidade Anhembi Morumbi, Especialista Jurídica no Vigna Advogados.
Sobre o escritório:
Fundado em 2003, o VIGNA ADVOGADOS ASSOCIADOS possui sede em São Paulo e está presente em todo o Brasil com filiais em 15 estados. Atualmente, conta com uma banca de mais de 280 advogados, profissionais experientes, inspirados em nobres ideais de justiça. A capacidade de compreender as necessidades de seus clientes se revela em um dos grandes diferenciais da equipe, o que permite desenvolver soluções econômicas, ágeis e criativas, sem perder de vista a responsabilidade e a qualidade nas ações praticadas.